Somos todas marias e pretinhas


Ela nos chama carinhosamente de pretas, somos todas pretas, pretinhas, e ela é a nossa preta.

Conheci Cristiane Alves, através do Facebook, e me identifiquei de cara. Lembro do nosso primeiro contato em que falávamos de um suposto estelionatário na rede... E nós, mulheres unidas, queríamos desmascará - lo...

Depois fui acompanhando suas escritas, suas postagens e me encantei com a forma dela escrever, relatar histórias de mulheres, de “Marias”, de “Vidas Pretas”. De vidas humanas...

Um dia eu disse: preta, eu quero fazer uma matéria contigo, pro meu blog. Cris logo aceitou e ficamos de combinar como seria.

Algum tempo se passou, e eu não achava jeito de abordar sobre aquele universo dessa escritora tão profunda, tão digna, tão excepcional...

Acompanhei o lançamento de uma de suas obras – Nossas Vidas Pretas, tinha também Vida Maria, e Um Príncipe Negro no meu mundo. E eu desejava ler seus livros, desejava muuuitooo!

À princípio queria ler o Nossas Vidas Pretas, pela repercussão que causou nas redes sociais, mas estava meio desfalcada economicamente. Ainda estou... Mas precisava retomar a ideia de fazer nossa matéria, sobre essa mulher incrível, sobre essas obras maravilhosas...

Tomei coragem, e chamei no PV: Amada, vamos fazer aquela matéria pro meu blog?

Vibrei quando a preta topou e ao mesmo, tempo me senti insegura quanto a entrevista que faríamos, por não conhecer de fato, por não ter lido ainda sua obra.

No entanto, para minha alegria, Cris disse que tinha Vida Maria em e-book. E podia me mandar se eu quisesse.

Comecei a leitura, e no meio disso marcamos a entrevista on – line.

 Foi pelo Google Meet, que eu estreei minha experiência de entrevistar nesse formato. Até então, eu costumava enviar as perguntas aos meus entrevistados e eles me retornavam com as respostas por e-mail.

Mas com a preta tinha que ser diferente, precisávamos nos ver cara a cara, conversar, dialogar...

Muito mais que uma entrevista, o que tivemos foi uma prosa repleta de conhecimento, de vida, enfim, pude conhecer quem é Cristiane de Assis Macedo Alves. E essa descoberta merece ser compartilhada com vocês, meus leitores e leitoras do Retratos da Alma, esse meu modesto “bloguinho”, como costumo chamar, que agora para edição de seu aniversário de dois anos, está repaginado, de cara nova, mais leve e com ares “profissa” como disse meu amigo Dudu (Eduardo Vasconcelos)...

Então o que vocês irão ler primeiramente, minhas amadas e amados, serão trechos da nossa conversa/entrevista, num formato nem tão convencional,  pautados por alguns amigos, juntamente com perguntas que foram surgindo no decorrer da minha Live com a Cris. Como presente de aniversário do blog, nesse dia memorável de 13 de dezembro.

Também irei trazer um conto de sua obra Vida Maria, por que foi a que acabei de ler, e em outros momentos irei falar sobre suas outras obras, reunindo outros trechos da entrevista, que foi longa, mas nem tampouco menos prazerosa.

Vale dizer, que nessa entrevista, vocês poderão entrar no universo da história da escritora, que assim como toda vida preta, é uma história de muito sofrimento, de muita discriminação e de lutas para se tornarem visíveis.

Espero que gostem de acompanhar essa prosa, e que assim como eu, apreciem o que a preta tem à compartilhar com a gente. E descubram assim como eu descobri, que nós mulheres, somos um pouco marias, guerreiras, sofridas, vulneráveis, putas, travestidas, mães, avós, esposas, donas de casa, donas da vida! Somos todas vidas marias, somos VIDA!

 


Retratos da Alma – A sua obra, Vida Maria, tem alguma influência da obra de Carolina Maria de Jesus?

Cristiane Alves – Na verdade, pra eu ser muito sincera, eu li alguns fragmentos de Quarto de Despejo, algumas resenhas, por que me despertava gatilhos, eu sofria ao ler, por isso não deu certo de eu ler capa a capa. Mas a minha mãe falava muito dela, elas moravam no mesmo bairro quando ela era jovem.

E eu tinha a Carolina, numa dimensão de afeto, de alguém que eu já conheci, sem ter conhecido, de tanto que minha mãe falava e se emocionava com as coisas que ela contava. Minha mãe era muito leitora, embora eu não tenha visto ela lendo a obra, sei que ela lia algo à respeito da Carolina.

Se existe alguma influência, é de tudo isso, desses universos muito próximos, que a gente vivencia, escuta e observa, mas não foi nada direto, por que eu não li ela.

O que acredito que as pessoas achem parecido, é que tanto no meu livro Nossas Vidas Pretas, e em Vida Maria, quanto no da Carolina, o que aparece é uma narrativa muito poética de algo que é muito duro, do sofrimento, da fome, da miséria, da humilhação, da vida preta se manifestando no papel.

Nesse sentido, acho que as pessoas acham semelhante, por conta da correlação, por que quando a gente descreve a pobreza, não é uma descrição narrativa bonita, falar de passar fome, e se humilhar para poder suprir aquelas pessoas que a gente ama. Mas ao mesmo tempo, como a escrita se manifesta, permite que as pessoas tenham uma certa afetividade com aquilo que está sendo contado, pela forma e afeto que está envolvido ali. Não que se tenha afeto pela fome ou miséria, mas ela tá falando de um mundo muito particular, pessoal, da vida dela, dos filhos, das pessoas que ela ama, e não tem como não transferir afeto nesse sentido.

Retratos da Alma – Como tu vê o episódio envolvendo a escritora Conceição Evaristo e a atriz Fernanda Montenegro, a segunda, sendo eleita para a Academia, e a primeira, sendo rejeitada, mesmo reconhecida como um dos nomes mais importantes da literatura brasileira hoje? Houve racismo nessa escolha? Mesmo fundada por um negro (Machado de Assis), pode se dizer que a Academia tem um viés racista?

Cristiane Alves – A Academia se cunha numa metáfora, se a gente tirar todas as cascas e as camadas, lá no molinho a gente vai ter um discurso de meritocracia, e você colocar um grande prêmio e apenas pouquíssimos vão estar lá, mas depois eles dizem: é pelo mérito, essa pessoa fez muito... E não é isso, são questões políticas, de QI, de quem indica, como a gente falava antigamente. De quem julga o faz através de uma questão pessoal. E ali está toda uma estrutura patriarcal, também binária; essa coisa de ser bom e mau, de ser branco e preto... Isso está muito bem representado na Academia Brasileira de Letras. Existe uma normatividade que está presente em todos os lugares. É uma norma branca, macha e hétero. A gente está começando a mudar e a ocupar alguns espaços, mas alguns espaços já existem para perpetuar essa condição, essa situação que é meio imutável em alguns lugares.

A Conceição Evaristo não foi eleita, por que ela não tem a cara daquela instituição. E a Fernanda Montenegro foi eleita, também por ela ter uma grande contribuição às artes, por ser uma excelente profissional, por ter uma fala importante, mas ela representa também, uma camada da sociedade que parece representar aquela instituição; uma camada que vem de uma certa estrutura social, tem uma linguagem que representa muito bem aquela camada elitista, branca, que tem a ver com a que eles querem. E o que eles querem é conservar, e sim, tem muito racismo. Não é por que foi criada por Machado de Assis, por que tem muita gente que nem considera ele negro, nem sei se ele propriamente se achava negro, por ser filho de branco. E por isso ter tido certas vantagens, por ter “sangue branco” correndo nas veias.

Eu sinto que Machado de Assis era uma figura importantíssima, mas o próprio fato dele estar em alguns espaços que eram vetados para a grande maioria da população preta, mostra que ele tinha vantagens. E ao mesmo tempo, perpetua na cabeça das pessoas que não tinha racismo – olha lá o Machado de Assis conseguiu, se ele consegue, qualquer um conseguiria se tivesse potencial pra isso.

Não é verdade, teve muito potencial escravizado, morto, enterrado dentro da senzala, inclusive de fome. E que nunca chegou a poder mostrar algum potencial, por que simplesmente era vestido numa pele preta, retinta. Morreu e ninguém viu.

Então Machado de Assis, tinha essa vantagem da paternidade branca, que era inclusive, institucionalizada naquele período.

E é isso, a academia não foi um espaço democrático e não é até hoje.

Retratos da Alma Como uma geógrafa, especialista em Educação Especial (Altas Habilidades/Superlotação) se tornou escritora? Escrevestes desde sempre, ou foi desenvolvendo mais tarde?

Cristiane Alves – Quando eu era pequena, a gente não tinha televisão, também não tinha muitos amigos por questões econômicas mesmo, a gente  não podia ficar muito no meio das pessoas, por que a gente não tinha muito pra dividir com as pessoas, por que a gente não tinha muito pra dividir com as pessoas e o nosso brinquedo muitas vezes era ler, contar histórias e depois que eu aprendi a escrever, era escrever. Eu fazia aqueles poeminhas bobos, a minha mãe ficava apaixonada, com aquelas rimas bobinhas... Então eu tive desde muito cedo,  aquela facilidade de leitura e escrita.

E antes da escrita codificada, o uso dos códigos, a gente já escreve, por que a oralidade também é uma forma de registrar as coisas, mesmo que ela não estava ali codificada, você faz um registro, e guarda a história na mente, você “tatua” aquele fantástico do conto falado.

Se eu escrevia desde sempre? Acredito que sim, e eu escrevia muito bem. Eu lembro que quando eu comecei a ir pra escola, eu escrevia coisas, a professora ficava comovida, mas ao mesmo, os professores nunca disseram pra mim: você tem um futuro brilhante, por que você escreve bem.

Olhavam para o que estava escrito, cochichavam com a vizinha do lado, levavam para discutir num grupo a sua redação, mas ela nunca retornou pra mim, dizendo: nossa você escreve muito bem, se você quiser a gente pode tentar ir adiante...

Era como se as pessoas não acreditassem que eu tivesse futuro. Era como se as pessoas olhassem pra mim e pensassem – que desperdício esse conhecimento todo, nessa cabeça, nessa pele.

Na década de 80, o preto não tinha muita perspectiva. Era como se eles dissessem: não vou fomentar nada, por que não vai ter futuro. Negra, pobre, periférica, favelada... Vai estudar um pouco, vai abandonar a escola, depois vai trabalhar na faxina, vai casar ou engravidar ainda criança e vai perpetuar essa situação de pobreza. Não vamos nem incentivar alguma esperança, ela não vai pra lugar nenhum.

Não acreditavam naquela criança, fosse outra criança teria outro desfecho, daquela criança preta, ninguém espera nada.

 


No entanto, Cristiane foi atrás dos seus sonhos, mesmo tendo uma infância e adolescência difícil, marcada pela fome, pela humilhação por ser preta e favelada.

Talvez o diferencial nisso tudo, tenha sido a influência da mãe, que, conforme Cris nos conta, o pai não era uma figura muito presente, e sim a mãe era o sustentáculo de tudo.

 

“A gente tinha poucas possibilidades, e minha mãe dizia: eu quero que vocês sejam melhores do que eu. Mas ela era uma mulher incrível, mesmo tendo uma leve dislexia era uma leitora ávida, eu sempre via ela lendo algo.

E ela fazia a gente interpretar o que a gente lia, nas letras, nos filmes, nas músicas, nos livros, nos outdoors...

Isso me influenciou muito, e quando fui fazer o Magistério, ganhei uma bolsa de estudos, e era um curso maravilhoso, voltado ao pleno conhecimento pedagógico, através do Cefam, e não o outro magistério normal.

Mas quando eu me formei eu não me via professora em condições de lecionar. E aí eu prestei vestibular pra UNESP, e lá tinha geografia. Então eu vi algo que eu poderia fazer, dentro da minha área que era humanas...

E fui muito bom, por que eu pude ir a lugares que não conhecia, pude entrar em restaurantes que nunca tinha entrado.

Com 19 anos fui morar sozinha, no caso, com outras meninas, mas sem nenhum parente, eu quero dizer.

Quando estava no último semestre, eu casei com meu namorado.

Me formei e fiquei um ano dentro de casa, vivendo essa experiência de esposa, de dona de casa...

Meu marido fez mestrado, estava fazendo doutorado, não terminou e fomos trabalhar.

Compramos carro, apartamento e decidimos ter nossa primeira filha. Viramos adultos, constituímos família e tal...”

 

A área de Educação Especial, assim como a formação em Gestão Ambiental, de Cristiane Alves, iremos abordar em outro momento aqui no blog, quando iremos também falar mais especificamente da concepção da obra, Nossas Vidas Pretas.

O que é interessante destacar nessa edição festiva, é que nossa preta começou a escrever suas obras, nas redes sociais.

Foi através do Facebook e na interação/feedback com outras pessoas que nasceram seus livros.

Cristiane costuma dizer, que somos todes coautores de suas obras literárias.  

E pra finalizar essa matéria/entrevista, nós vamos trazer pra vocês, um conto de abertura de Vida Maria e em seguida uma maravilhosa surpresa, ainda inédita, presentinho da preta, pro nosso Retratos da Alma.

Importante destacar também, como os leitores podem entrar em contato com suas obras.

Para adquirir Vida Maria e Um Príncipe Negro no Meu Mundo, é através da Editora Terra Redonda.

O Nossas Vidas Pretas pode ser adquirido pelo site da editora Desconcertos.

E para aqueles que quiserem uma dedicatória, é só entrar em contato com a autora através do Messenger.

 

Vida Maria 

 

Existem coisas na vida para as quais não há como dar nome, nem predicado. São, como dizemos, “coisas da vida”.

Coisas da vida são fatos dos quais não se pode fugir. Coisas que não podemos impedir ou explicar. É só a vida sendo vivida, não há o que fazer.

E talvez não haja na vida fato mais corriqueiro que viver. Nada é mais comum que continuar, por que é o esperado, tanto é que a vida poderia se chamar Silva, Souza, Alves, tão comum que é.

De repente poderíamos perguntar aos amigos: como vai a Silva; ou como tem passado a Souza, nos últimos tempos; quiçá arguir sobre Alves em pleno movimento de “alvir” ou “alvar”.

Mas nas minhas experiências desse verbo corriqueiro que é viver e todas as suas particularidades e minúcias (nada corriqueiras, posto que são únicas), penso que nada poderia nomear melhor a vida que o nome Maria. A vida é Maria. Simples, mas nem tanto. Parece daqui, mas está em toda parte. Sempre quando uma se vai a outra vem. Nunca acaba, mesmo que termine.

É assim sobre a vida Maria que desejo falar, sobre ser mulher ontem e hoje, para que no futuro ter vida Maria signifique viver leve.

Serão, seremos, muitas Marias. De batismo ou de destino. Sejamos Maria com cada uma dessas mulheres que se apresentarão de agora em diante.

 

A menina

 

A menina sofria de ausências. Não eram apagões de memória e lembranças. Eis um fato: crianças têm muita memória, justamente por ter poucas lembranças. As ausências eram de afeto, do tempo que os adultos não tinham para lhe dar, e nem sempre por não quererem. É que suportavam ser responsáveis pelos seus traumas futuros, esses poderiam negar ou justificar, entretanto não suportariam ver a fome matar seus filhos.

A fome do filho aperta primeiro as tripas dos pais.

Aperta, mas só dos que têm tripas. Geralmente são as mães que têm tripas dobradas. Deus dobra as tripas das mães porque sabe que os pais  e suas vísceras não  estarão por perto.

Os olhos dos pais evitam que o coração sinta. Talvez por esse motivo o Pedrinho tenha matado o pai e comido seu coração enquanto ainda pulsava quente.

Ali sentada naquela pequena sala, a menina tinha ausência. Ela queria pertencer e matar as fomes. Mas não entendia os códigos. Lá naquela pequenina congregação, a menina não era nem gente. Os adultos queriam a atenção de Deus. Gritavam e abanavam os braços, numa concorrência desesperada pela atenção divina. Frenéticos.

Como não tinha nada, nem Bíblia, nem dízimo, nem os costumes, quando deixou de frequentar, ninguém notou.

Olhava tudo com a sensação de desespero e inalava todo cheiro de lama e fezes com a intervenção da divina fadiga olfativa.

Era essa a ideia. Sair daquele lugar sem coordenada geográfica que o situasse era necessário.

A esperança desesperada é não poder esperar nada. É ter que fazer os caminhos com as unhas e os dentes.

E depois talvez alguém diga: "se tivesse se esforçado"...








 

 

 

 

 

 

 

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