Os portais que escolhemos
Foi através de um grupo do WhatsApp denominado - Antologias Abertas, que fiquei conhecendo Susana Silva, uma escritora portuguesa, organizadora de antologias.
Foi bem engraçada a forma como acabamos fazendo contato, eu havia comentado em determinado momento, que eu recebia em sonhos as histórias que compunham meus contos. De modo que produzia até dormindo.
Logo em seguida, a Susana, que até então eu não sabia de quem se tratava, disse que com ela acontecia exatamente o mesmo. Ou seja, recebia as histórias com o enredo prontinho nos sonhos dela.
E foi assim que começamos a manter contato e eu comecei a mandar contos pras antologias organizadas por ela.
ENTRE O PASSADO E O PRESENTE é uma delas, onde os selecionados foram convidados a compor o livro físico. Mas se não me engano a obra também está disponível em e-book.
A obra trás contos que remetem a uma viagem no tempo mesmo, percorrendo universos fictícios ou não, entre o passado e o presente de cada história selecionada.
Hoje para essa edição do Retratos da Alma, eu lhes trago o meu conto - Portais dos Mundos. Nele você vai poder conhecer um pouco da minha história de vida, as lembranças do passado e até o que poderia ter sido meu presente se tivesse escolhido outro "portal" da minha existência.
Portais dos Mundos
Atravesso o grande portal, ou melhor, centenas de porteiras que me fazem retornar a tempos remotos de minha existência. Eu tenho 5 anos de idade e uma porteirinha de tábuas gastas se abre rangendo-se toda. Cai uma tabuinha no chão vermelho, sob as doces florzinhas rasteiras. Eu estou recitando versinhos para a platéia de familiares. Meu avô é quem mais vibra comigo, – minha riqueza de lindeza, meu Mel das'oropa. É uma artista ele dizia, vai ser uma professora rural quando crescer. Minha outra mamãe, assim eu me referia a uma tia, irmã de meu pai, também era toda elogios para a sobrinha querida.
E eu no auge da minha primeira infância, atinjo o grau máximo que alguém poderia chegar morando nos confins dos rincões. Me tornar uma professora rural.
Sim, minha mãe era exemplo disso e um modelo para mim desde sempre. Ia junto na sua escola, sentava na classe para colorir gravuras, na mesma sala que a mãe lecionava para dezenas de alunos em classe multiseriada. Acho que foi ali mesmo que aprendi a ler e a escrever. Para eu aquilo era um mundo encantado.
Uma outra porteira dava para o quartinho de casa na cidade. Eu já estava num grau acima, me vejo dando aulas para minhas bonequinhas de pano. Tinha um pequeno quadro negro com giz colorido. As lições que eu estou ensinando para meus alunos, são da Cartilha da Mimi, que eu levava na aula. Presumo que eu estava a alfabetizar meus “aluninhos de pano”.
Dessa vez era um grande portão que se abria. Primeiro dia de aula no primeiro ano. Eu estava ansiosíssima por esse dia. Pra conhecer meus coleguinhas, a professora, enfim todo o ambiente escolar, que naquele momento tomava outras formas, como se fora totalmente desconhecido. Um mundo novo se abriria pela frente.
Eu usava nessa estreia triunfante, um uniforme nas cores azul marinho e branco. Sainha plissada com camisa de listrinhas finas, usava também um par de congas com meia brancas, com cheirinho de novas.
Toca a sineta. É hora de fazer fila para entoar o Hino Nacional e o Hino a Bandeira. Um momento cívico que, no entanto dava o tom daqueles tempos um tanto sombrios. O ano é 1979, o País governado por João Batista de Oliveira Figueiredo, o último presidente do período da Ditadura Militar no Brasil. Não me detenho a fatos históricos, embora eles estejam sempre presentes e marcantes nos meus portais da lembrança, dado que minha mãe sempre comentou em casa aqueles anos difíceis para quem quisesse expor suas opiniões contrárias àquele regime ditatorial.
Outro portal se abre e vislumbro um majestoso Colégio de Freiras. Magia e encantamento é o que posso descrever desse momento, do alto dos meus 13 anos.
Eu estou tocando violão e cantando a letra da música que fiz para a padroeira das Filhas do Sagrado Coração de Jesus, Santa Tereza Verzeri. A santinha do meu coração.
"Vem Tereza, vem ensinar
Aqueles que não sabem viver
Deixa falar em seu coração
Ensina os ricos a partilhar.
É o refrão da minha música. E o sentimento único de satisfação de quem almeja seguir a vida religiosa.
Já em outra porteira, agora fechada, sem a beleza de dias primaveris, estou numa aula de Física, não, é dia de prova e eu sabia muito pouco do conteúdo da disciplina, no primeiro ano do Ensino Médio. Sou aquela aluna que costuma ter os famosos "brancos" em dia de avaliação. O que eu não sabia naquela hora, é que aquele dia marcaria para sempre o rumo do resto da minha vida.
Rodei na prova de Física. Minha nota no boletim era assustadoramente vermelha! Vou repetir o ano. É só o que consigo pensar.
Nessa época eu estaria entrando para o chamado curso Normal, o então Magistério. Era pra isso que estudava em colégio particular das freiras.
Minha mãe se esforçava para dar-me um bom estudo que pudesse garantir uma profissão digna. Que todos julgavam ser na época, honrosa, a carreira de professora. Tão massacrada nos dias atuais.
Eu havia sido criada para não repetir de ano. E esse já era o meu segundo da lista, por causa das malditas ciências exatas. Assim como Ariano Suassuna, e essa comparação me enche de orgulho, eu nunca me dei bem nas continhas. Até os cálculos mais simples eu errava.
Desse momento em diante eu só via se dissolver o meu sonho, que era o mesmo sonho da minha mãe – ser professora. Mas como filha de uma excelente e conceituada educadora do município, eu só via que jamais daria conta de chegar a seus pés. Tinha o pensamento muito semelhante ao dos filhos de artistas famosos, ou seja, eu teria que ser tão melhor ou igual que minha mãe. E eu não era. Tinha repetido ano por duas vezes. Havia manchado a honra da minha mãe, que como ela costuma frisar, nunca rodou inclusive em concurso público.
Decidida a seguir outro caminho na vida eu cheguei em casa e informei minha mãe que iria fazer o curso de Auxiliar de Enfermagem, com argumentos de que levaria menos tempo pra eu me formar e poderia terminar o ensino médio em escola pública.
E foi assim que eu tive meus primeiros anos de Ana Nery(patrona da Enfermagem no Brasil), carreira que durou apenas alguns anos da minha vida.
Abre-se então um enorme portal em minha mente, onde vejo "um mundo" de sonhos e possibilidades; a jornada de uma vida gloriosa, eu professora seguindo os caminhos da minha mãe. Já estava na faculdade de Letras. No lugar de onde nunca deveria ter saído. Numa aula de Literatura Brasileira.
Pense na alegria da pessoa que parecia estar no próprio paraíso e na companhia de Machado de Assis, José de Alencar, Jorge Amado, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Mário Quintana, e tantos outros monstros da Literatura Brasileira. Era puro êxtase nos meus vinte e poucos anos, o que eu sentia. Pra completar o cheirinho inesquecível de caderno novo.
Pula pra outro portal da imaginação e eu estou dando minhas aulas com meus alunos ávidos pela aprendizagem. E eu aprendendo e compartilhando conhecimento de suas vidas; local de onde vinham, suas profissões, e me deparava com aquela cena, que mais parecia ter saído de dentro de um filme. Cabecinhas pensantes querendo absorver mais é mais conhecimento. Eram donas de casa, pedreiros, marceneiros, garçons, agricultores, moradores de periferia; gente como a gente, e eu me lembrava de Paulo Freire, daquele pensamento que eu achava tão digno, “Não existe saber mais ou saber menos, o que existe são saberes diferentes".
Ali naquele lugar eu era minha mãe lecionando para o programa de Educação de Jovens e Adultos, o EJA. Eu podia me sentir em seu lugar partilhando "A alegria de Ensinar", de Rubem Alves. E naquele lugar eu era feliz para sempre. Por que tinha escolhido entrar noutro portal, ainda dava tempo na vida, de recuperar o tempo perdido. E eu só pensava que um outro mundo era possível. Bastava escolher os portais.
Muito bom, Rose...o texto conduz a gente prá dentro da história
ResponderExcluirObrigada, Paulo. É sempre bom esse feedback do trabalho da gente ☺️.
ExcluirLindo Rose!
ResponderExcluirParabéns !
Obrigada Eliane
ExcluirEncantador !!!
ResponderExcluirQue bom que gostou, Alex.
ExcluirEste é um trecho do livro ou escrito, especialmente para o bloguinho? De qualquer forma, é uma leitura fácil e deliciosa.
ResponderExcluirÉ um conto meu selecionado para compor a Antologia.
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