"Não há democracia, sem liberdade política e igualdade social."
Foto: Joca Duarte |
O sociólogo
Ricardo Festi é certeiro ao analisar o atual momento político, econômico e
social do País e não se esquiva de dar nome aos bois. O Professor Adjunto da
Universidade de Brasília (UnB) sintetiza o Brasil de hoje com um olhar global e
consegue didaticamente provocar reflexões necessárias e urgentes para a
atualidade.
Acompanhe a
entrevista concedida ao nosso blog:
R. A. - Como o senhor define
sociologicamente o Brasil hoje?
R. F. - A sua pergunta é muito difícil de responder de forma curta e
sintética. O Brasil é um país muito complexo, um entrecruzamento de formações
sociais e de culturas. Seu processo de formação está vinculado a colonialidade,
isto é, as ações praticadas pelas nações capitalistas desenvolvidas para
subjugar outros povos com colonialismo, escravidão e dependência econômica.
Trata-se, portanto, de um país que se industrializou tardiamente, sem destruir
as formas pretéritas de relações sociais vinculadas à colônia e à escravidão. É
por isso que, encontramos em nosso território relações econômicas consideradas
as mais modernas, como a indústria de telecomunicações, por exemplo, ao lado do
trabalho escravo. Muitas vezes, as formas aviltantes de trabalhos precários são
o ponto de partida da produção do valor. Então, este desenvolvimento que se deu
de forma desigual e combinada explica hoje este país tão desigual na
distribuição de suas riquezas.
R. A. - O Brasil é visto atualmente como um
pária internacional. O que fazer para
perdermos este rótulo?
R. F. - Isso deve-se a uma questão conjuntural da política. Ao fato de termos
um presidente negacionista e ultrarreacionário, que vai na contramão das
tendências globais. Para mudar isso, precisamos trocar o presidente da República.
No entanto, é importante lembrar que o Brasil tem sido, desde os anos 1940, uma
referência cultural, em particular pela riqueza de nossa diversidade
étnico-racial. O que aqui dentro é motivo de vergonha para as classes
dominantes que, por natureza, são racistas - pois o racismo é o que permite
manter suas posições de privilégio na estrutura da sociedade -; lá fora é visto
como expressão de riqueza singular. Então, voltando a sua pergunta, queria
destacar que não será difícil sair desta posição de pária, desde que mudemos o
Presidente. Agora, quem botar no lugar é um outro debate, que vai para além de
como somos vistos no exterior.
R. A. - A democracia está em perigo?
R. F. - A democracia liberal está sempre em perigo, pois ela é frágil. O capitalismo
é um sistema global socioeconômico que cria contradições estruturais que
impedem a integração e o acesso da maioria da população à riqueza produzida. A
contradição latente entre apropriação privada e bem comum está na raiz deste
sistema e isso torna fraco qualquer regime político que se pretenda
democrático. Não há democracia sem liberdade política e igualdade social. É
necessário mudar o sistema para acender a uma verdadeira democracia para todos
e todas e não para alguns.
R. A. - O seu trabalho de pesquisa versa a respeito das relações de
trabalho no mundo contemporâneo. A uberização chegou para ficar?
R. F. - A principal tendência do capitalismo em sua fase neoliberal é a
exteriorização e a flexibilização do trabalho, duas das características
fundamentais da uberização. O que há de novo, em relação ao longo processo de
reestruturação da produção que temos visto desde meados dos anos 1970, que tem
levado ao fim do regime fordista, é a intensidade e o extensão deste processo.
Isso tem sido possível por conta da implementação das novas tecnologias da
informação e comunicação que permitiram o surgimento das plataformas digitais,
em particular da automação algorítmica. Então, enquanto tendência do
capitalismo, a uberização é o futuro do mundo do trabalho, pois ela permite um
aumento significativo da taxa de lucro das empresas e uma desorganização da
classe trabalhadora. No entanto, não podemos nos esquecer que a tecnologia não
determina tudo. Tem surgido reações por parte dos trabalhadores e isso criará
contestações e projetos alternativos que entrarão em disputa com o
neoliberalismo.
R. A. - O Brasil voltou a ser colônia novamente?
R. F. - Do ponto de vista tecnológico e da divisão internacional do trabalho, o
Brasil sempre foi dependente dos países de capitalismo central. Nos anos 1950 e
agora nos governos do PT, foi difundido ideário de que seria possível criar uma
economia autossuficiente, mas isso se mostrou uma ilusão. Não há como ter
completa autonomia no capitalismo contemporâneo sem romper com o próprio
capitalismo e isso não pode ser feito por apenas um país. Então, se entendermos
que ser colônia é ser dependente de outras nações, então responderia que sim,
pois temos visto um processo de primarização da economia e pouco investimento
em tecnologias que nos permitiriam ter mais autonomia sobre os rumos de nosso
futuro.
R. A. - A pejotização fez com
que a precarização do trabalho ganhasse ares de modernidade. Existe alguma
fórmula possível para mudar este cenário em favor do trabalhador e da
dignidade?
R. F. - É necessário organizar a resistência e lutar por mudanças na
legislação, criando formas mais protetivas do trabalho. No entanto, a
pejotização, o trabalho intermitente, a ideologia do empreendedorismo, a atomização
do trabalho são todas expressões do capitalismo em sua fase neoliberal. É
difícil individualmente resistir a um fenômeno que é global. A ideologia
dominante tenta nos convencer que o fracasso ou o sucesso de alguém recai sobre
o indivíduo. Isso é uma mentira. Hoje temos pós-graduandos e engenheiros
trabalhando como motoristas de aplicativos. É necessário lutar para que a
proteção ao trabalho seja maior e proibir as formas aviltantes e degradantes de
trabalho. Esta é uma tarefa que transcende os sindicatos e os movimentos
sociais. É necessário ter também partidos lutando por isso. Trata-se de um
projeto de poder e não apenas de disputas legislativas.
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