Para ler na quarentena
Gente essa escritora é o máximo, super gente fina, Marina Monteiro, ela interage com a gente no Instagram, no Facebook, escreve uns textos muito bacanas e é a autora desse livro que vou adquirir em breve - EM NOSSA CIDADE AMARELINHA ERA SAPATA.
Marina é porto-alegrense de nascimento e infância, manezinha da ilha de coração e carioca há onze anos de morada. Escritora, atriz, arte-educadora e dramaturga. É formada em teatro pela UDESC e estuda Filosofia na UFRJ. Em 2010 teve seu primeiro livro publicado, “Comendo borboletas azuis”, pela editora Multifoco/RJ. Em 2018 retomou sua produção literária. Com o conto “Assalto” foi selecionada para a edição da zine “Que o dedo atravesse a cidade, que o dedo perfure os matadouros”, idealizada pelo coletivo Palavra Sapata. Com a prosa “Ninguém morreu!” participou das edições das revistas Panta e LiteraLivre. Assina a organização do livro Uma Vida Positiva de Rafael Bolacha. Em nossa cidade amarelinha era sapata é seu primeiro livro de contos.
Conheça o conto do livro - Em nossa cidade amarelinha era sapata, de Marina Monteiro. A obra é publicada pela Editora Patuá. E siga a escritora pelo Instagram, @marinaalmeidamonteiro
EM NOSSA CIDADE AMARELINHA ERA SAPATA
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, céu. A pedra não pode cair na linha. O pé não pode pisar na linha. Você precisa lançar a pedra no número certo da vez. Ir pulando conforme os quadrados, às vezes ficar num pé só. No quadrado da pedra você não pisa. Você cata a pedra e você chega ao céu, em algumas versões do jogo você precisa voltar tudo depois de chegar ao céu e aí sim, somente na volta, catar a pedra. Os quadrados podem ser desenhados com giz de escola, tinta, carvão, ou aquele pedaço quebrado de tijolo laranja, e há quem faça tudo com fita adesiva.
Jogodeamarelinha.
Em nossa cidade o jogo de amarelinha também era chamado de sapata.
Vamos jogar sapata Cecília?
E eu sempre ia. Com ou sem convite. Adorava. Não perdia uma oportunidade. Jogar sozinha não era a mesma coisa. Não tinha ninguém pra gente ficar comparando os avanços e nem ninguém pra dizer que a gente tinha queimado. Eu sempre preferi os olhos externos. Por isso quando a Ágata estava junto era sempre melhor.
1,2,3...errei. A pedra queimou na linha. Não é hoje que eu chego ao céu.
E o que é que tem lá no céu mãe? Quem é que vai pra lá? Como é que se chega? Eu fazia essas perguntas e minha mãe dizia que só gente muito boa ia pro céu. Gente que não fala palavrão, que não responde aos pais, que não rouba, gente que reza e confia em Deus, gente que respeita os avós... (e de repente ela aumentava a voz perto da janela que dava pra rua)...gente que não é de safadeza, gente que contribui com a igreja, mulher que não é de se mostrar demais, mulher que não troca de marido que nem quem troca de calcinha, mulher que cuida dos seus filhos e do seu marido, mulher que não se dá ao desfrute... (a lista era muito grande, e eu fui aprendendo que era a forma de minha mãe dar o recado para as vizinhas próximas).
Na escola a gente sempre jogava sapata. Eu e as gurias. Era nossa brincadeira favorita.
1,2,3,4,5,6...errei. Dessa vez não foi a pedra que queimou na linha, mas eu tinha que ter dado a voltinha num pé só e eu não consegui. Deu uma fraqueza na perna direita.
Ontem à noite eu quis usar uma bermuda azul e uma blusa do homem-aranha que eu gostava. A bermuda era minha, a madrinha tinha me dado de presente. Eu adorava. Simplesmente adorava. E a blusa do homem-aranha era do meu irmão, mas ele tinha me emprestado. Só que meu pai disse que não podia. Eu não quis saber. Se o meu irmão pode, por que eu não podia? Ele disse que a filha dele não ia sair na rua parecendo um guri de jeito nenhum e que se eu não entendesse por bem, ia ser por mal. Foi por mal, óbvio. Daí foi ruim de dar a voltinha num pé só. Ainda lateja.
...gente que não é de prevaricações com o marido das outras, gente que não fica mostrando os seios, gente que educa os filhos dentro da igreja, gente que não permite que os filhos façam o que quiserem, gente direita de família, gente que não é depravada, gente trabalhadora, gente de bem... (dessa vez eu não perguntei quem ia pro céu, mas minha mãe me catou no colo e ficou ali naquela ladainha pra rua toda ouvir. Eu ficava pensando quem ali tinha que escutar aqueles recados. Meu pai abriu a porta forte. Minha mãe me soltou na hora). Tu precisa incluir nessa lista uma coisa aí mulher. (Ela pegou papel e caneta pra anotar). Sapata. Tu precisa colocar aí que sapata não vai pro céu. Não tem jeito de ir. Coisa mais nojenta desse mundo. (Minha mãe anotou tudinho).
Sapata não vai pro céu? Coisas têm que ir ou não pro céu? Jogos? E quem joga sapata, vai pro céu? Não ousei perguntar sobre nada disso. Mas não dormi à noite pensando naquilo: sapata não vai pro céu. Minha mãe tinha anotado. Ela ia gritar isso na próxima cantilena na janela.
Vamos jogar sapata Cecília?
Tudo bem se a gente chamar de amarelinha agora Ágata?
Por quê?
Sapata não vai pro céu! Eu acho que é porque já tem o céu nela mesma, mas eu prefiro ir pro céu porque a minha mãe diz que é bom lá.
A minha também. Mas...a gente joga amarelinha agora?
É, é a mesma coisa.
Não muda nada...
Não.
1,2,3,4,5,6,7,8,9...errei. Nas portas do céu eu deixei a pedra cair da minha mão na hora de catar ela no chão. Num contragolpe ela me escorrega entre os dedos. É que eu fiquei tão impressionada olhando pro quadrado de céu da sapa...amarelinha, que eu perdi a noção de tudo. Tudo bem, eu tento na próxima. Uma hora vai dar. Eu vou conseguir chegar ao céu e vencer o jogo. Não é difícil. A Ágata sempre consegue.
...sapata não vai pro céu. Coisa nojenta, pouca vergonha... (passo reto escondida da minha mãe. Dessa vez ela não me pegaria pra ficar pendurada na janela no meio do sermão dela).
Fui pro meu quarto e fiquei pensando na festa junina que ia ter na rua. Nessa eu podia ir. A mãe e o pai deixavam porque era da igreja. A gente só não podia dançar e nem comer demais que era pecado. Também não podia ficar perdendo tempo nas barraquinhas de brincadeira, e a barraquinha do beijo era invenção destas mulheres putas da rua. Ninguém sabia como o padre Genaro tinha aceitado. Barraca do beijo nem pensar!!! Mas podia comer um pouco, desde que fosse nas barraquinhas das colaboradoras da igreja, porque aí sim o destino do dinheiro era confiado. Mas eu gostava mesmo assim. Porque eu via gente diferente. A rua ficava cheia de gente do bairro todo, e aí no meio de tanta gente diferente, gente até do centro da cidade, meu pai e minha mãe não eram quem eles eram e nem eu era filha deles e aí eu podia ser quem eu quisesse.
E dava pra jogar sap... amarelinha com gente diferente.
Essa festa mulher. Sei não. Não sei se Cecília deve ir.
Mas a menina adora.
Mas tem que ficar de olho nela mulher.
Meu pai anda muito preocupado. Acho que ele vai até à prefeitura pra remover a sapata. Não sei como é que ele pode mudar o nome de um jogo, mas ele quer fazer isso.
1,2,3,4,5,6...errei. Mas não queimei, nem deixei a pedra cair por entre os dedos. Dessa vez foi a Ágata que me chamou. Veio correndo. Língua pra fora. Tinha perguntado pra mãe essa coisa de sapata e de céu.
Tu entendeu tudo errado.
É?
Minha mãe disse que teu pai tá falando de outra sapata.
Qual?
Uma mulher.
Chamada sapata?
Não. Que ele conhece. Que é sapata.
Então não é o jogo?
Não. É a mulher.
Mas como?
Dessas aí que fica com mulher.
Fica?
Beija e tudo. Que nem artista de novela.
E pode isso?
Não é normal, por isso teu pai tá assim.
Então pode falar que vamos jogar sapata?
Poder, pode, mas a mãe disse que é até bom evitar falar isso agora. Eu já me acostumei a falar amarelinha.
É, eu também...
Mentira, eu não tinha me acostumado, mas não queria falar sapata, mesmo tendo esclarecido os fatos. Sobretudo tendo esclarecido os fatos.
1,2,3,4...errei. Mas é porque no meio da festa eu não consigo mesmo me concentrar em chegar ao céu. Tem tanta luz, tanto cheiro, tanta comida boa e gente bonita. Eu queria ter vindo com a blusa do homem-aranha. Meu irmão emprestou de novo, mas achei melhor não arriscar. Preferi aproveitar a farra. De longe vejo minha mãe gesticulando e reclamando:
Marcha de carnaval não é música de Deus Gorete. Tem que falar pro padre proibir.
Ela saiu atrás do padre junto com a dona Gorete. E eu avistei de longe o carrinho de maçã do amor. Não era das comidas que eu podia comer, mas eu gostava tanto. Corri em direção ao carrinho, por entre as pernas que iam e vinham em diversos ritmos levantando poeira do chão. Cheguei na frente daquele mar de bolinhas vermelhas brilhantes. Mas não era mais a mesma moça quem vendia. Era uma outra que eu não conhecia.
Oi, quer uma?
Quero sim. Mas cadê a dona Luísa?
Minha mãe está muito gripada. Esse ano tive que vir.
Aí começa a tocar uma marchinha: “Maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é Maria de noite é João”. E umas pessoas da rua passam pelo carrinho de maçã do amor e mexem com a moça filha da dona Luísa. Ela fica sem graça. Fecha a cara. Tenta se concentrar. Meu pai vem vindo de longe gritando:
O que tu tá fazendo com a minha filha sua sapata?
Eu fico querendo que aquela música pare de tocar. Onde está a minha mãe que ainda não achou o padre? Eu só quero que aquela música pare de tocar. A moça deu a maçã do amor pra mim bem na hora que começou a tocar a música e meu pai vai achar que eu...
A festa ia acabar alguma hora mesmo.
1,2,3,4,5,6,7,8,9...errei. Dessa vez foi de propósito. Encarei o céu de cima. Aquela palavra escrita de resto de tijolo. Lembrei da voz da minha mãe. Joguei a pedra bem longe.
Enfiei as mãos na mochila e catei minha maçã do amor. Eu consegui uma nova com a moça. Encontrei ela na volta da escola e dessa vez eu estava sem a Ágata. Aí fiquei de papo com ela um pouco, olhando bem pros dois lados da rua. Perguntei da dona Luísa. Estava melhorando. Mandei um abraço. Ela agradeceu e me deu uma maçã do amor, já que naquele dia a minha tinha caído no chão no meio do entrevero. Agradeci e escondi a maçã do amor no fundo falso da minha mochila, junto com a blusa do homem-aranha que meu irmão me deu de presente. Ficou com pena de mim pelo que aconteceu depois da festa.
Tirei o plástico transparente e barulhento e fiquei olhando meu reflexo na casca brilhante de caramelo vermelho daquela maçã do amor. Em seguida dei uma baita duma mordida nela, bem grande, a maior que eu pude. E fiquei ouvindo o crack-crack que fazia dentro da minha boca. Meu reflexo sumiu.
Deitei no chão e fiquei olhando pro céu. Se lá não tinha maçã do amor e nem blusa de homem-aranha, então lá não devia ser um lugar tão bom assim. Eu que não ia.
Crack-crack-crack-crack.
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