Quando nasce uma estrela
Está pra nascer pro mundo uma estrela. Assim eu prefiro descrever quando sinto e pressinto de longe o despontar de uma artista, ou de uma escritora/poeta.
Ela se auto-intitula Deusa, anjo, bruxa, rainha, e parece ser um misto de tudo isso.
Patrícia Farias, vulgo Pati Farias, nasceu em Porto Alegre, RS, em 1997. E está tentando graduar-se em Letras pela UFRGS.
Sua estréia literária, fora da timeline da rede social, se deve ao conto “O Estupro” publicado no site O Partisano sob curadoria de William Dunne. Tem também poemas publicados no blog Variações – Revista de Literatura Contemporânea do poeta Marcos Samuel Costa.
Pati com toda sua juventude já provoca inquietações, diz que cansa de ser chamada ou tratada como louca, puta, vadia, demonha.
Que mais adiante no decorrer da entrevista a gente vai entender o por quê...
Sim, essa edição do Retratos da Alma trás pra nossos leitores e leitoras, mais uma entrevista com objetivo de conhecer um pouco o universo da entrevistada. Já tivemos por aqui outros escritores (as), fotógrafos (as), desenhistas, artistas, enfim, procuro registrar no nosso afetuoso "Bloguinho", esse mundo dos "arteiros" em todos os sentidos da palavra.
E hoje o dia é dela - Acompanhem o que é a profundidade, o conhecimento, a criatividade dessa escritora ainda tão jovem, e que certamente vai ser muito comentada no meio literário.
Com Patrícia Farias é que faz sentido a palavra sucesso!
Quando a conheci, através das Redes Sociais, já tive um impacto na hora , já que os títulos dos poemas e textos da Pati são todos em letras maiúsculas, mas com um detalhe, um ponto final entre cada letra. É a sua marca registrada.
E depois é só surpresa e encantamento com essa gaúcha!
R.A - De onde vem a tua inspiração pra escrever de forma tão peculiar?
P.F. - Pode parecer babaca o que eu vou dizer, mas creio que a minha inspiração ou as minhas inspirações (pirações) vêm da vida. “Homo sum: humani nil a me alienum puto” (Sou um homem: nada do que é humano me é estranho.) Essa máxima de Terêncio, poeta e dramaturgo romano, me representa. O meu estado de poesia é fruto da minha identidade humana. É claro que o vocábulo “homem” a que se refere à frase diz respeito à Humanidade. Embora no século II a.C. a mulher não tinha voz na sociedade e sua vida intelectual era nula ou não era levada em consideração. Mas, para não me estender em identidade de gênero – não é o caso aqui –, as minhas (ins)pirações são guiadas ou construídas a partir da minha observação do cotidiano, da minha paixão incondicional pela leitura, da apreciação das artes de modo geral (literatura, teatro, circo, cinema, museus, dança, música, etc.) e também da escuta. Muito já se disse sobre o fato de poetas serem as antenas da raça. A sensibilidade de poetas e artistas é afetada pelos cinco sentidos (e em especial o sexto sentido, no caso de nós mulheres); estamos sempre sangrando à flor da pele.
R.A. - Você sempre quis ser escritora e por isso cursar Letras, ou já desejou seguir outras áreas?
P.F. - Ainda criança fiz curso de balé e me interessei por piano. Cheguei a freqüentar algumas aulas. A professora de piano ficou admirada com meus dedos finos e compridos e disse que eu tinha mãos de pianista. Nas aulas de piano com a professora Martha Schneider infelizmente não passei dos exercícios iniciais com Chopin, Mozart e Bach, acho que não me dediquei o suficiente. Queria chegar em Liszt e Rachmaninov. Mas aí já era muita pretensão da minha parte. Não se pode dar o salto maior do que a perna, como se costuma dizer. Mas levei pra minha vida o gosto pela música erudita e treinei o meu ouvido musical de forma a reconhecer qualidade também na música popular, na música pop. Morro de paixão também pela equitação. Ando a cavalo desde os três aninhos. Praticamente todos os dias ao amanhecer cavalgo na Esperança, meu xodó. Quando me sinto meio macambúzia penteio a crina da Esperança, coloco a cela e troto com ela pelo campo. O cheiro do pasto e a brisa na folhagem já são revigorantes e restauradoras, suficientes para melhorar o meu astral. Mas não tenho pretensões esportivas com o cavalo. Olho com horror para o esforço daqueles cavalos saltando obstáculos. Acho que minha égua foi a minha boneca. Desculpe por ser dispersiva. Quando estou cavalgando me perco e me encontro em meus pensamentos. Volto para casa cheia de idéias para escrever e isso se faz urgente. Sempre penso que deveria ter um gravador ou mesmo gravar no celular meus pensamentos, minhas idéias. Mas nunca o faço. Pode ser que diante da gravação eu travaria. Não sei. É algo a se pensar. Desde menina (eu ainda sou uma menina) a literatura, em especial a poesia, me fisgou. Meus pais me contam que antes de aprender a ler eu já fabulava. O mundo da imaginação da criança é muito rico. Ela explora, cria seres e outros mundos, tem uma riqueza interior enorme. Com o tempo o crescimento que vai se encarregando de ceifar isso. Uma pena. Creio que muitas pessoas têm necessidade de expressão artística. O meu interesse pela literatura surgiu daí, creio eu: necessidade de expressão artística. Poderia ter sido o piano, ou qualquer outro instrumento musical. Mas não. Meu instrumento é mesmo a pena, a caneta, as teclas do computador ou do celular. Penso que estes instrumentos são extensões do meu braço que canalizam coração e mente e traduzem pensamento/sentimento/idéia no papel. Não consigo imaginar a minha vida sem a escrita. Quando escrevo é que eu sou mais eu.
R.A. - Por que escolheu esse título do seu primeiro livro - "Meu nudes é a poesia"? Você pode dar uma palhinha sobre o livro, como será? Algum poema em destaque...
P.F. - Eu queria um título que fosse de certa forma instigante. E pensei em buscar isso num verso de um dos poemas do livro. Como meu poema Nudes foi o mais curtido e compartilhado na rede, achei ideal que o título do livro fosse um dos versos desse poema. Descartei a possibilidade de nomear apenas como Nudes com receio de que já houvesse algum livro com este nome. Então preferi usar o verso Meu nudes é a poesia. Coloquei em votação no Facebook e realmente, como imaginei, é o título que meus amigos virtuais mais gostaram. Creio que os poemas do livro são bem crus e de certo modo cruéis, principalmente com os homens, machos heterossexuais, brancos de classe média, conservadores. Mas às vezes penso que poderia carregar ainda mais na tinta. Nunca fico satisfeita com a porrada que dou neles. Sempre acho que deveria bater mais, que pegou de raspão, ever. Reproduzo o poema:
Os canalhas inbox nem bem dizem oi
e logo pedem,
clamam,
fazem biquinho (bebês babões que são),
quase ordenam: manda nudes!
Rules, roots - rudes!
Sacanas! Machos escrotos!
Quem não tem paciência, não tem ciência.
Quem não sabe cortejar,
não domina as técnicas da conquista, meu amor.
Quem pensa que mulher se "ganha",
que mulher se "pega",
não vai pegar nem vento – no máximo uma "gripezinha".
Quem pensa que mulher se vence pelo cansaço
a custo de muita persistência,
só pode ter ejaculação precoce.
Que coisa mais chata, tio!
O flerte é uma arte, meu bem.
Sorry, queridos, a vida não tem manual.
Amo o meu corpo,
cuido dele como a minha morada,
bem como cuido da minha alma
e da minha cabeça.
Nesse ponto sou muito socrática.
E como já se tornou chavão,
lugar comum entre nós feministas
aprendi a dizer: meu corpo, minhas regras.
E disso eu não abro mão.
Mando nudes sim!
Mando nudes sempre que posso!
Mando nudes todos os dias, meus virtuosos amigos virtuais,
mando nudes todos os dias pra vocês, seus amigos da onça,
hostis e mal agradecidos,
me dispo todinha pra vocês
através da minha escrita.
Quando compartilho meus devaneios,
meus pensamentos mais vis,
enfim, meus arroubos pseudo literários
forjados a ferro e fogo
nos recônditos mais íntimos do meu ser,
é quando me sinto mais fragilizada,
temendo a todo e qualquer momento
ser hostilizada ou simplesmente ignorada.
Meu nudes é a poesia.
Beijos de luz, beijo me liga.
Quer dizer, fica assim:
de meia em meia hora nem eu te ligo
nem você me telefona.
Abraço cordial,
virtual,
à distância
porque é melhor assim,
é mais seguro,
ainda mais em tempos de Pandemia.
Força, aguerridos guerreiros!
Usem máscaras (em cima das máscaras reais),
lavem bem as mãozinhas com álcool em gel
e fiquem em casa, pelamor!
Ah! já ia me esquecendo:
e guardem a linguagem chula pra vocês, talkey?,
ou se expressem através de poemas
porque fica mais bonito.
Me errem! Amém?
R.A. - Por que tu achas que te tratam de “louca, vadia, demonha”?
P.F. - Eu penso que uma mulher de opinião assusta a maioria dos homens. É natural que agredi-la é uma maneira que muitos deles encontram para deslegitimizar a sua fala. Quando os argumentos são frágeis, partem logo para a agressão física e verbal. Sabe aqueles ogros que escrevem nas redes com letras em CAIXA ALTA, português descuidado e repleto de palavrões e exclamações? Então! É esse tipo a que me refiro.
R.A - Qual é o caminho para fazer com que mais jovens criem gosto pela leitura?
P.F. - As crianças e adolescentes estão em processo de formação e por isso precisam de alguém para se espelhar. Se não tiver nenhum exemplo de leitores no seu círculo familiar ou de amigos, muito dificilmente a escola, na figura de um professor, vai conseguir suprir essa demanda. Já é histórico o descaso dos governos brasileiros quanto à educação, cultura, esporte e lazer. O Brasil é um país muito rico onde pessoas passam fome e não têm sequer um teto para viver. Como falar de leitura sem pedir licença e perdão a toda essa massa excluída na sociedade brasileira? Parece até utopia. É preciso que os cidadãos se conscientizem a eleger representantes comprometidos com a educação do país. As escolas poderiam produzir feiras de trocas de livros de modo a trazer as comunidades onde estão inseridas, incentivando assim pais e filhos. Esse papel poderia também ser desempenhado por líderes das comunidades de bairro, através de saraus, oficinas de arte, teatro, circo, dança, etc. Basta que uma pessoa tome uma atitude para que vários apoios comecem a surgir. Como bem disse Mario Quintana: “Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas...”
R.A. - No que você se baseou para criar o conto "O estupro"?
P.F. -Eu me baseei em algo que compartilho com todas as pessoas do meu sexo: o medo. Como respeito o isolamento social não tenho saído de casa. Mas já cansei de ser abordada na rua, de receber elogios maliciosos, desrespeitosos. Mesmo quando vestida “decentemente”. A grande verdade é que a mulher merece respeito como ser humano mesmo se estiver nua, desacordada, sob efeito de narcóticos, mesmo fora de suas faculdades mentais. Uma mulher nessas condições precisa de ajuda e não de abuso. Mas voltando a questão do que me motivou a escrever esse conto: o medo real de ser abordada à noite em local ermo, de ser agredida, seqüestrada (como é o caso da personagem do conto) estuprada e até morta. O Brasil tem cerca de 180 estupros registrados por dia, ou seja, uma margem de um estupro a cada 8 minutos. Mas sabemos que as estatísticas são baseadas em casos registrados. Então esse número com certeza é muito superior já que muitas mulheres não denunciam seus abusadores por falta de apoio familiar e receio de retaliação por parte dos agressores. No conto, pensei em uma personagem jovem como eu, ultrajada e sem a menor perspectiva de socorro: presa pelo abusador em uma casa isolada no meio da floresta por dias e dias, semanas, talvez meses. Essa personagem usa de suas últimas forças para escapar, mesmo correndo o risco de ser assassinada. Ela decide usar de sua única arma possível: os dentes. Dizer mais do que isso é dar spolier. Leia o conto.
R.A. - Quais são tuas escritoras e escritores preferidos?
P.F. - Ah, são tantas! Eu quase que só leio mulheres. Vou tentar enumerar algumas das minhas favoritas, mas vou acabar cometendo injustiça e esquecendo alguém: Safo, as irmãs Brönte, Jane Austen, Mary Shelley, Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, Simone Weil, Sylvia Plath, Anne Sexton, Ingeborg Bachmann, Anaïs Nin, Lygia Bojunga, Clarice Lispector, Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Ana Cristina César, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, (...). Autores homens cito apenas três: Homero, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade.
R.A. - Eu percebo que você praticamente não expõe teu rosto nas redes sociais, isso tem algum motivo específico?
P.F. - Sim. Já sofri ameaças. Excluí meu perfil anterior por conta do assédio virtual de haters. Fiquei meses fora das redes e depois voltei com uma nova postura. Ao invés de expor minha imagem, exponho o machismo e os machistas através das minhas palavras. Na terceira onda do feminismo a idéia de inclusão (mulheres negras, pobres, trans) é vital. Por isso gritamos. Por isso o enfrentamento. Dizem que a melhor defesa é o ataque. Sempre fui muito pela conciliação, mas temos que jogar o jogo ou sempre acabaremos perdendo. E estamos perdendo há séculos. Chega!
R.A. - Fala um pouco do teu dia a dia, como estás enfrentando esse momento pandemia? E a interação com as pessoas nas redes sociais, o contato com seu público leitor...
P.F. - Nesses seis meses de Pandemia confesso que só saí de casa uma única vez. Respeito demais o isolamento social. Eu me mantenho ocupada. Sou muito organizada, focada, centrada. Tenho horário para tudo: atividades físicas, leituras, estudos, escrever, assistir um filme ou um episódio de uma série, ouvir música, andar a cavalo... Enfim, costumo preencher bem meus dias. Não fico ociosa, com depressão. Procuro ocupar minha mente. Sou muito disciplinada e me habituo fácil a uma rotina. Tenho um caminhão de leituras da faculdade para pôr em dia. Durante esse período escrevi dois livros: um de poesia e um de contos. Esbocei um romance, mas ainda não parei para me dedicar a ele. Tenho que redigir os trabalhos da faculdade. Quanto à interação nas redes sociais, estou um pouco afastada disso. Sinceramente não sou muito de redes sociais. Dá uns cinco minutos em mim e excluo tudo. Nem whatsapp eu tenho mais. Gosto de interagir com as pessoas presencialmente, cara a cara, olho no olho. Só assim consigo enxergar a verdade de cada um.
As imagens desta matéria foram extraídas do Facebook de Patricia Farias, onde você poderá conhecer mais sobre nossa entrevistada |
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