Psicografias de Morfeu


Representando a categoria

       A marca era tipo carimbo na testa, só que da cor acaju daquelas que pintam em salão de beleza. Tava na “testa lambida” da minha mãe, professora aposentada com 43 anos de magistério como ela mesma sempre faz questão de destacar, afinal, foram essas décadas quase todas vividas em salas de aula alfabetizando, e na *alegria de ensinar.

       Tavam mais ralinhos os fios de cabelo, perdidos na certa por tanto tempo se esforçando para educar, sim no seu tempo se educava os alunos. Em casa e no ambiente escolar. E era permitido dar uns beliscões nos mais teimosos e birrentos e bagunceiros que incomodavam os que queriam aprender.

       Minha mãe era uma professora que deixava os alunos levarem tazo, pra sala de aula e tirava um dia pra jogar bafo. Depois que descobriu que eles levavam igual e se distraiam e não prestavam atenção na aula. Deixou um dia reservado para o jogo de bafo de Tazo, aquelas figurinhas famosas da época. Conta que foi uma festa geral. Mas ela pediu tarefa depois com as figurinhas, escrever o nome do animal, algo assim. Surpreendeu-se, por que os pequenos resolveram por conta própria fazer um pequeno texto falando sobre os animaizinhos e fizeram um grande mural na sala de aula em exposição. Aquilo dava estímulo para ensinar, diz hoje minha mãe, ainda emocionada.

       Mais tarde lecionando para o quarto ano ginasial, ela recebia na sua turma os tais “alunos problema”, que a maioria dos colegas recusava, pois tinham dificuldades no aprendizado, eram repetentes (naquela época se repetia de ano),  e muito rebeldes, com problemas em casa, enfrentavam doenças, alcoolismo, violência, etc. 

      Ninguém acreditava naqueles alunos. Achavam que eles eram caso perdido. Que não tinham jeito. Pois minha mãe acreditava que eles tinham jeito sim, e fazia eles acreditarem nisso. No seu potencial. Às vezes xingava e dava beliscões e umas reguadas quebradas e ninguém chamou o Conselho Tutelar por causa disso. Os pais mandavam executar mais, isto sim.

     Mas minha mãe, usava de uma certa “Pedagogia do oprimido”, de Paulo Freire e de psicologia junguiana, mesclada a métodos freudiados aos seus poucos convencionais e ia ensinando e levantando a moral de seus pré - adolescentes, que incrivelmente aprendiam sim!

     E hoje, pais de família, enxergam minha mãe na rua, e agradecem a ela, pois dizem – graças à “profe” Marina eu hoje tenho estudo, diploma e não virei um marginal!
Isso nunca saiu da minha mente, imagina dos alunos seus. Me comovo com isso, por que penso que se o salário não valeu a pena e a peleia continua até hoje. Pelo menos isso valeu. Sei, por que minha mãe, também me passou as lições de casa direitinho. As da vida e as de aula! Ricas pra mim, e que não tem DINHEIRO nesse mundo que as pague.

       Foi ela que me ensinou as primeiras noções de cidadania. Que existem oprimidos e opressores. E que é preciso lutar, lutas de classe para se alcançar vitórias nas suas lutas. É por minha mãe professora, que eu nasci pensando no coletivo. Só sei viver se repartir o pão. A merenda, o livro, o caderno, o lápis e a caneta, não é professora Dalva Moura de Freitas? Tu também contribuíste, para mais tarde ampliar e dar continuidade a este meu senso de justiça, igualdade e solidariedade. Nossa afinidade vai longe...

       Assisti o “Documentário da Esquina” e me vi na Esquina Democrática com minha mãe, com dez, ou onze anos de idade. Na Rua da Praia, no Araujo Viana, nas Ruas de “Porto Alegre tchau”. Quanto tempo se passou, e essa memória é fotográfica, até em sonhos.  “Nas ruas de um Porto não muito alegre”, mas, que, no entanto, me traz encantos, traduzidos em versos e prosa...
“Avante professores em pé/unidos pela educação/nós vamos todos juntos com fé/neste momento/ neste nação”...

   A cidade, para mim maravilhosa, guardava um quê de encantamento e de luta engajada. Sempre fora assim. Adoro Poa. As passeatas, os encontros, o Fórum Social Mundial. Os acampamentos, os shows, os bares. O cheiro de Maria Joana no ar... Lá tudo é bom. Até lutar. Por que: “Professor unido jamais será vencido”. E eu escolhi ser jornalista, pra poder registrar decerto.  

   Se hospedar no prédio do Cepers com minha mãe, era tipo o que eu conhecia como hotel, de luxo pra mim. Nem dormir eu queria. Queria ir pra passeata, pra manifestação.
No final eu olhava pra testa da mãe, meio borrada, mas dava pra ver tipo carimbo cor de acaju: REPRESENTANDO A CATEGORIA.

*Referência ao livro de Rubem Alves – A Alegria de Ensinar , que eu presenteara minha mãe, no evento, há alguns anos já (com alunos, colegas e ex-alunos), de homenagem pela sua aposentadoria, no auditório da Escola Estadual Amélio Fagundes de Independência, na qual eu li o texto, o Momento mais marcante com minha mãe, quase em prantos, lógico.

   E aproveitando a deixa da greve dos professores estaduais, aqui do Rio Grande do Sul -
       
Governador retira esse pacote de maldades!
Pacote este que massacra e humilha a classe dos trabalhadores em Educação, bem como de outros servidores públicos. 

Texto de R. Bitencourt 

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